quinta-feira, 2 de outubro de 2008

O papel do Estado diante do caos econômico - artigo de Carlos Lopes, Hora do Povo, 1.10.2008

Ditadura especulativa entra em agonia com a crise americana

Em vez de torrar dinheiro público com os especuladores, só o Estado para instituir uma via democrática no caos.

Depois de uma semana de entusiasmo frenético pelo “Pacote Bush” - US$ 700 bilhões em dinheiro público para ajudar picaretas, aventureiros, negocistas e monopolistas financeiros de Wall Street – alguns elementos aqui em nosso país parecem às portas do desespero com sua derrubada, pelos próprios republicanos, na Câmara de Representantes dos EUA.

Naturalmente, eles não conseguem ver a nossa economia senão como um anexo da economia norte-americana – e a economia norte-americana senão como um quintal dos mesmos especuladores de sempre.
O fato de que as crises dos países centrais são um momento em que é possível o desenvolvimento maior das economias dos países periféricos – exatamente porque está enfraquecida a capacidade do centro exercer sua dominação – lhes parece uma anomalia.
No entanto, nada há de estranho nisso – é, aliás, perfeitamente lógico. Foi sempre o que aconteceu no Brasil, desde a crise de 1929 e a Revolução de 30 até a crise dos anos 70 e o II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND), muito justamente lembrado, há alguns meses, pelo presidente Lula.
O estranho, irracional e anômalo é achar que no momento em que as relações de dependência estão debilitadas, nós devemos nos submeter mais a elas e levar a nossa economia para o mesmo brejo onde afunda a dos EUA. Para o Brasil, um grande país de imensos recursos, a alternativa de acelerar o crescimento nacional em um momento como este é, aliás, relativamente fácil. Muito difícil – e, em verdade, catastrófico – seria não fazê-lo, ao contrário do que sempre fizemos.
COISA
Quanto aos EUA, a melhor definição para o que houve segunda-feira na Câmara de Representantes (v. matéria na página 8), foi a do republicano Scott Garrett, deputado por Nova Jérsei, que votou contra o pacote: “Suponho que os democratas viram os mesmos problemas que nós vimos: eles não queriam voltar para casa e explicar essa coisa”.
Em síntese, a esfarrapada demagogia de que os US$ 700 bilhões eram para salvar as velhinhas, os aposentados, os pequenos empresários, os operários, a classe média, etc., esbarrou na oposição das velhinhas, dos aposentados, dos pequenos empresários, dos operários, da classe média, etc.
O povo norte-americano foi brutalmente expropriado durante os últimos anos e, em especial, desde a eclosão dessa crise. É, no momento, um povo endividado e com a poupança da vida inteira, a começar por sua casa, sendo tomada pelos bancos e financeiras. Por isso mesmo, os norte-americanos percebem que nenhum benefício haverá para si em dar US$ 700 bilhões para quem os expropriou.
O próprio nome com que foi batizado o pacote - pela mídia favorável a ele - mostrava o seu caráter: “bailout plan”. A palavra “bailout” significa saltar de pára-quedas de um avião que está caindo ou vai explodir. Em suma, os US$ 700 bilhões em dinheiro público era um pára-quedas destinado aos que engendraram a crise: que esses escapassem com o dinheiro e que o avião - a economia – caísse e explodisse com o povo norte-americano a bordo. Por isso, o plano ficou logo conhecido como “Wall Street bailout”.
Os republicanos tinham, em geral, pouca coisa contra isso, exceto pela circunstância de que haverá eleições daqui a um mês e pouco – e os sem pára-quedas, isto é, os eleitores, veriam seu dinheiro ser dado pelos deputados para que os espertalhões saltassem fora do fatídico avião. Não seriam os republicanos, para os quais reeleger-se já não é fácil, que iriam colocar o pescoço na guilhotina, aprovando “essa coisa” poucos dias antes das eleições.
Por isso, foram os correligionários de Bush que derrubaram seu “bailout”, a começar por McCain, que somente declarou-se a favor depois de rejeitado, para acusar Obama pela derrota - segundo sua teoria, o candidato democrata tinha a obrigação de conseguir votos suficientes para que o plano fosse aprovado sem os votos dos republicanos... Assim, os democratas teriam a nobre missão de cavar seu próprio túmulo para salvar os especuladores e os republicanos que os cevaram.
Evidentemente, cabe a Bush e aos republicanos a culpa pelo crime. Como disse a presidente da Câmara, Nancy Pelosi, “por demasiado tempo, oito anos, esse governo tem seguido uma ideologia de direita segundo a qual vale tudo, sem nenhuma supervisão, sem nenhuma disciplina, sem nenhuma regulamentação. Nenhum emprego foi criado, nenhum capital; foi criado o caos”.
Deixar as coisas como estão – ou piorá-las, com bilhões de dólares para os mesmos vândalos econômicos - é permitir que o caos destrua o que há de melhor nos EUA: seu povo, seus trabalhadores, seus verdadeiros empreendedores. O que se pode esperar de uma economia entregue à ganância, sem regras ou limites, de monopólios financeiros, com o seu rastro de aventureiros menores? Que levem a economia para o brejo e instalem uma ditadura aberta – afinal, o que é o governo Bush senão uma ditadura aberta, inclusive com a Constituição e suas garantias suspensas pelos atos impatrióticos?
O que há de promissor nos EUA é a agonia desse estado de coisas. A questão, nesse momento de crise, se reduz à expressão mais simples: ou o Estado, como representante dos interesses coletivos, dos interesses da sociedade, intervém para controlar os bancos e financeiras que implodiram pela ganância de seus proprietários, estabelecendo limites, regras e regulamentações para os antros especulativos, e responsabilizando os infratores da lei, ou será impossível conjurar o caos. Trata-se de instituir uma ordem democrática sobre o caos – a vontade do povo sobre a vontade de uma oligarquia falida. E somente usando o Estado como instrumento, tal como na era Roosevelt, isso é possível.
FACHADAS
Perante isto, é quase divertido – não fosse, diante do custo humano, a insensibilidade de tais palhaçadas – ver certos indivíduos, nos EUA e aqui, referirem-se ao bailout de Bush como “socialismo” e “estatização”, como se dar dinheiro do Estado a especuladores, a magnatas falidos, a vigaristas que encheram seus cofres fabricando papéis num fictício valor 40 ou mais vezes superior ao seu patrimônio, fosse socialismo ou estatização.
Pelo contrário, o “Wall Street bailout” é apenas a continuação da política a que se referiu a deputada Nancy Pelosi: a da pilhagem de milhões de norte-americanos e de bilhões dos habitantes da Terra por algumas quadrilhas financeiras, que - fachadas, testas-de-ferro e laranjas à parte - não chegam hoje a meia dúzia.
CARLOS LOPES

Nenhum comentário: